Na semana em que se rememora as conquistas sociais, políticas e econômicas das mulheres ao longo dos anos, a lei Maria da Penha não poderia estar de fora. Citada pela ONU como uma das pioneiras no mundo na defesa dos direitos das mulheres, a lei 11.340/06 foi um marco fundamental para mudar o conceito de violência doméstica.
Os crimes cometidos contra a mulher deixaram de ser casos de cesta básica ou de mera multa, já que, antes da lei, a violência contra mulher era considerada crime de “menor potencial ofensivo”. A lei Maria da Penha trouxe punições mais severas e dentre os principais avanços, estão as medidas de proteção como a determinação de afastamento do lar e proibição de aproximação por quaisquer meios de comunicação.
Conheça a história da mulher que deu início à luta contra violência doméstica:
Histórico
A lei Maria da Penha completa, em 2018, 12 anos; mas os motivos de sua origem são conhecidos da sociedade há tempos: bebida, ciúmes, raiva e irresignação são algumas desculpas que os homens alegaram ao longo dos anos, e ainda alegam, para tentar justificar o crime contra mulher.
Embora os porquês sejam subjetivos, os números demonstram a gravidade palpável da violência contra mulher no Brasil:
É interessante observar também como o país reagiu à lei Maria da Penha desde que ela entrou em vigor. Logo no ano seguinte de sua promulgação, o número de denúncias caiu. À época, a delegada Márcia Salgado, responsável pela coordenadoria da defesa das Delegacias de Defesa da mulher, disse que “a impressão é de que a possibilidade de prender o marido fez a vítima pensar duas vezes antes de registrar a queixa”.
(Fonte: O Estado de S. Paulo, 2007)
(Fonte: Jornal Tribuna, 2007)
Mas essa perspectiva durou pouco. A lei foi sendo melhor explicada e as mulheres conseguiram denunciar.
(Fonte: Jornal Tribuna, 2008)
Mudanças
No decorrer desses 12 anos, a lei não estagnou; muito pelo contrário, ela acompanhou as mudanças sociais. O texto foi a primeira referência legal no país a contemplar a orientação sexual da vítima. Vale lembrar também que a lei Maria da Penha é uma lei de gênero, ou seja, mulheres transexuais também são protegidas pelo dispositivo.
Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
Uma de suas últimas mudanças significativas foi sancionada pelo presidente Michel Temer no ano passado. O atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica ganhou novas regras, sobretudo, no que se refere a atuação das autoridades policiais. O atendimento policial e pericial especializado, deve ser feito preferencialmente por servidoras mulheres.
“Já que a nossa lei é considerada uma das melhores, vamos fortalecê-la”
Em entrevista exclusiva ao Migalhas, Maria da Penha faz um balanço da aplicação da lei no Brasil. Embora a cearense reconheça o avanço que o dispositivo trouxe na luta para o combate da violência contra mulher, ela também sabe dos desafios que precisam ser transpostos.
Um deles é a aplicação igual da lei no país todo. Segundo Maria da Penha, os municípios menores são os que sofrem mais com a falta de infraestrutura. A cearense considera que são nestas pequenas cidades onde ocorrem maior incidência de violência contra mulher porque “se a a mulher não tem onde denunciar, ela não tem como se orientar, ela permanece naquela situação que ela sempre viveu, de violência no lar.”
Ainda sobre a aplicação da lei nos diferentes lugares do país, Maria da Penha ressalta:
A gente percebe, inclusive com as pesquisas que o instituto fez mais recente, que a violência ainda está muito presente na sociedade na região nordeste do pais e também há um descaso do Poder Público em criar as políticas que atendam a eficácia da lei. Então a gente tem nas grandes cidades, que são geralmente as capitais, uma estrutura razoável. Mas nos pequenos municípios, é muito difícil encontrar uma estrutura que atenda as mulheres daqueles municípios.
Confira a entrevista com Maria da Penha:
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Com a lei Maria da Penha em vigor por mais de uma década, como a senhora avalia a evolução dela no país?
Nós percebemos com as pesquisas que o instituto fez mais recente, que a violência ainda está muito presente na sociedade na região nordeste do país e também há um descaso do Poder Público em criar as políticas que atendam a eficácia da lei. Nas grandes cidades, que são geralmente as capitais, temos uma estrutura razoável. Mas nos pequenos municípios, é muito difícil encontrar uma estrutura que atenda as mulheres daquelas cidades. Infelizmente com doze anos que vamos fazer agora em agosto com a ascensão da lei, infelizmente o Poder Público ainda continua muito omisso nesses pequenos municípios.
Como a senhora enxerga criação de outras leis de proteção a mulher, como a lei do feminicídio?
Acredito que é algo muito positivo. No momento em que um agressor, responsável pela morte da sua companheira, é julgado como homicídio simples, existe uma falha do Estado. O feminicídio é um fenômeno muito mais grave que o homicídio. O feminicídio é um crime em que as mulheres vão permanentemente sofrendo violências, e se a mulher não tem onde denunciar, ela mantém aquele estado de ser vítima de violência até determinado momento em que seu agressor premedita o crime e o pratica com requinte de perversidade. Por exemplo, a mulher não quer continuar um relacionamento, e esse homem promete que vai mudar, e nesse momento que estão relativamente bem na relação, ele premedita o crime e essa mulher desaparece. Muitas vezes, só depois, só com a polícia procurando e investigando, observa-se que a mulher foi assassinada pelo companheiro, e ela acreditou no que ele disse.
Como a senhora se posiciona perante a fala de algumas pessoas que dizem que a lei Maria da Penha infringe o art. 5 da CF, em que todos são iguais perante a lei?
Eu questiono às vezes como pessoas que querem até fazer graça ao dizer essa besteira. Porque sabe-se sim que, as mulheres são vítimas costumadas de seus agressores, a maioria delas. Enquanto 98% da população feminina pode sofrer ou já sofreu algum tipo de violência, 2% dos homens podem sofrer ou conviver com esse tipo de violência. A mulher é impotente diante da força do homem, das estratégias que o homem usa para agredi-la. Eu não falo nem de agressão física, mas outras que são graves, como a psicológica, a sexual, a patrimonial, que são todas aquelas agressões que estão tipificadas na lei Maria da Penha. E o homem, muitas vezes, sofre violência em situação quando está mais fragilizado, às vezes é uma pessoa idosa que casa com uma pessoa mais jovem, então esse homem pode sofrer um tipo de violência, mas isso não quer dizer que esse homem não seja atendido pelo poder público e pela constituição. Claro, se ele sofre violência doméstica, que é errado tanto o homem quanto a mulher sofrer, este homem pode ir a uma delegacia comum e denunciar a sua companhia o agrediu. Nesse caso, ela vai responder processo. Agora, a lei Maria da Penha tem que ter um componente especializado, por isso existe a delegacia da mulher, o juizado, porque é assim que ela pode funcionar, é assim que a mulher se sente mais confiante em colocar suas intimidades a uma outra mulher.
Como a senhora acha que a lei pode evoluir?
Primeiro de tudo ela deve ser uniformizada em todo país, todos os municípios terem uma atenção especial as mulheres a mulher do seu pequeno município, por menor que ele seja. Existem estratégias que podem ser criadas para a lei Maria Penha se faça presente em todos os pequenos municípios também.
Quais seriam essas estratégias?
Como o centro de referência da mulher é um dos mais importantes que pode atender a lei Maria da Penha, seria necessário que houvesse um entendimento entre os prefeitos dos municípios menores para que cada um deles criasse uma estrutura de atendimento a lei. Isso serviria para que a mulher de um pequeno município tivesse um centro de referência caso ela esteja correndo risco de vida. Se ela precisar mudar para uma casa abrigo, que essa casa seja no município, não no próprio dessa mulher, mas em outro onde existe esse pacto. Então aquele grupo de pequenos municípios podem colocar a necessidade de ser criada num deles o centro de referência da mulher, aliás, em todos. Nos outros, em determinado município se cria a casa abrigo; no outro o juizado e no outro a delegacia da mulher. Com tanto que essas mulheres possam ser enviadas ou para a delegacia ou para a casa abrigo com a estrutura do seu município de morada e os outros também tenham condição de levar essa mulher. Não é preciso criar quatro políticas públicas em um só município pequeno, mas que cada um ajude os demais da sua região.
Em 2015, o tema da redação do Enem foi a violência contra a mulher. Como a senhora avalia essa discussão na sociedade com os mais jovens?
O ideal era que mais e mais jovens discutissem isso, mas infelizmente o Brasil ainda não atendeu ao pedido do Comitê interamericano dos direitos humanos, nesse que faz parte do relatório que finalizou com a criação da lei. Quer dizer, além da OEA ter solicitado a mudança legislativa do país para que os crimes de violência contra a mulher não ficassem na impunidade, ela solicitou duas recomendações: a inclusão do tema nas escolas do nível fundamental, médio e na universidade, isso ainda não aconteceu. Só algumas universidades que colocaram a discussão em seus currículos, infelizmente o único dispositivo que o ministério da educação fez em relação à lei maria da penha foi nessa vez do vestibular.
O que impede uma mulher de sair de uma situação de violência?
São vários os motivos. Às vezes ela não tem independência econômica; às vezes ela não pode dar uma condição de vida aos filhos que o pai, mesmo sendo agressor, tem o poder de dar uma condição de vida melhor aos filhos do casal; às vezes é porque ela ama demais esse homem e não se reconhece vítima de violência, principalmente dos outros tipos de violência, que não seja a física. Muitas vezes, essa mulher diz que “o meu marido nunca me bateu”, isso a faz permanecer no tipo de violência patrimonial, sexual ou psicológica.
Fonte: Migalhas.com